Reis & Mott

Reis & Mott

Domingo, 03 Abril 2022 19:42

Petit Godot

Teatro Menor

Sexta, 23 Outubro 2015 18:12

Escuta.org

Escuta.org reúne projetos de arte sonora e performance de Simone Reis e Iain Mott, junto com outros artistas e técnicos colaboradores, incluindo Marc Raszewski, Jim Sosnin, Nelson Maravalhas, estudantes do Departamento de Arte Cênicas da Universidade de Brasília (UnB), entre outros.

Para ver os projetos individuais, consulte projetos no menu acima. Os projetos são divididos em cinco grupos: 1) instalação sonora e cênica de Mott, Reis e outros 2) performance de Simone Reis 3) arte sonora e composição musical de Iain Mott  4) pesquisa de Iain Mott 5) projetos pedagógicos de Reis e Mott na Universidade de Brasília.

Rebeca Guimarães – 14 anos
Instituto de Educação Fênix - INSEF, Ceilandia

Em relação ao cenário, como eu já li o livro de Machado de Assis, o quarto onde se passou o espetáculo é o mesmo de quando li o livro e imaginei o quarto de Jacobina. Uma outra observação foram os quadros: um casal, dois quadros relacionados a Jesus, uma mulher que aparenta ser a tia de Jacobina, e tem uma pintura quase na entrada para demonstrar Jacobina. Havia uma cama com uma boneca, e ao lado o espelho em uma penteadeira. O cenário é muito importante para a nossa imaginação, pois quando entramos podemos pensar em como achamos que deve ser. Em relação aos sons, foi incrível, porque é como se estivéssemos no lugar de Jacobina, que quando estava só, acabou ficando louco, ouvindo vozes de vários lugares. Achei muito interessante o fato de ter várias caixas de sons para ficar mais real essas ideias. As músicas deixaram o ambiente mais dramático e ajudou muito. O interessante é que as vezes a voz da atriz se encaixava com a música ou ao som do mundo, ou seja: pássaros, a boneca dormindo, gotas, entre diversas coisas . Em relação as luzes, ficou bastante legal as luzes coloridas, as vezes destacando os quadros, as vezes apagando e acendendo, ou mesmo tudo escuro, é mais uma maneira de imaginar. Em relação ao próprio espelho, é uma sensação muito estranha e diferente, ao sentarmos, muitas vezes parecia que a atriz era nosso reflexo, e que a sua voz era a nossa própria voz, percebi isso através da maneira que ouvimos. A ideia que se quis passar na minha opinião é que o nosso exterior é diferente do nosso interior, que existem duas almas, como está no papel: "... uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro"!... é isso!

Juliana Maria – 13 anos
Instituto de Educação Fênix - INSEF, Ceilandia

Bom, o espetáculo foi bem interessante e diferente. Foi além do que eu imaginava. O espaço, a decoração, som, as expressões faciais da atriz e luz, cada detalhe bem colocado, fez com que o espetáculo tivesse uma impressão do que aconteceu no vídeo, estava realmente acontecendo no quarto, pois as vozes e barulhos de fundo fez parecer que tinha alguma pessoa de trás de nós. Mesmo que tenha me dado medo, foi um ótimo espetáculo.

Domingo, 13 Setembro 2015 17:53

O Espelho, inspirada em Machado de Assis

Gladstone Machado de Menezes, setembro de 2012

O espectador senta-se diante do espelho. Como Jacobina, o narrador do conto de Machado de Assis ele vê, nítido, o quarto refletido no vidro. Ouve: bolhas. Cigarras. Pios de pássaros. Música das estrelas.

Mais nada. A não ser o espaço vazio onde ele deveria se refletir.

As palavras especulação e consideração têm origem comum. Verdade ou mentira?

De acordo com o velho Dicionário dos Símbolos, especular era observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho (speculum). Sidus (estrela, astro) deu considerar, que significa olhar o conjunto das estrelas.

Então: diante do espelho o espectador especula. Para depois considerar. Será ele a silhueta difusa, aquele que não se vê no vidro? Ou será ele também a sequência de personagens-Eu que ocupam o lugar do reflexo, do outro lado do espelho?

Em O Espelho fica evidente a maturidade da atriz e performer Simone Reis. Como nos trabalhos anteriores, ela transita sem percalços entre o cult e o trash, o clássico e o popular, o sublime e o grotesco, o apolíneo e o dionisíaco, o Butoh e o teatro rebolado, o racional e a loucura, a superfície e a profundeza, a fotografia, a pintura e o vídeo, a Academia e o centro espírita.

Termos contrastantes sempre caracterizaram o trabalho de Simone Reis. Porém, ao compartilhar a direção com Iain Mott neste trabalho, combinam-se o arrebatamento e a fleuma, com resultado surpreendente. As contradições aparentes são suavizadas, recobertas por uma camada delicada de poesia, quase luz, quase aura.

Simone Reis atua desde o fim da década de 1980. Com Zé Celso e Zé do Caixão. De Melbourne, na Austrália, a Uberaba, em Minas Gerais, sem contar o Japão. Interpretou (em momentos diferentes) a doce Ofélia e o atormentado Hamlet. Encenou de Clarice Lispector a Edith Piaf, passando por Maria Bethânia e Raul Seixas. Participou da Companhia de Danças Atípicas, com os artistas Felícia Johansson, Eliana Carneiro e José Eduardo Garcia de Moraes. Et cetera.

O australiano Iain Mott, estuda música computadorizada, novas mídias de arte e desenho fonográfico. Além de criar instalações interativas de mídia computadorizada. Seus trabalhos foram apresentados nos quatro cantos do mundo: em Melbourne, na Austrália; na China; na Áustria; em Barcelona; em São Paulo; em Eindhoven, na Holanda; e agora, em Brasília.

O conto "O Espelho", de Machado de Assis, é o ponto de partida para a instalação concebida por Simone Reis e Iain Mott. Trata-se de uma estória dentro da estória. Cinco senhores cinquentões jogam conversa fora. Ou, melhor, especulam sobre a consistência da alma. Segundo Jacobina, cada ser humano possui não uma, mas duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.

Vale a pena recontar:

Aos 25 anos Jacobina fez-se alferes da Guarda Nacional. O respeito, o reconhecimento, a distinção e a bajulação com os quais a assunção do posto o distinguiu diante das pessoas fizeram com que ele passasse a se ver e reconhecer apenas como tal. O título de senhor alferes subiu-lhe tão completamente à cabeça que a alma exterior (a que olha de fora para dentro) ocupou o lugar da alma interior (a que olha de dentro para fora). A ponto de lhe borrar o ser-reflexo no vidro do espelho.

Diante do espelho o espectador vê o contorno. A ser preenchido pelos Eus dele e por uma infinidade de Outros, os personagens-Eu que surgem, sem que ele os possa controlar. Eles misturam-se. O espectador defronta-se com a impossibilidade de distinguir. E se embaça ao considerar sobre o espelho.

Pode-se chamar a instalação de espetáculo? Espetáculo também é da família de espelho.

(Espetáculo no sentido de Farsa, Teatro, Encenação. Ver e ver-se - e quem sabe, refletir-se por meio de símbolos, códigos, imagens, sons, palavras, disfarces articulados, no ator, performer, encenador - o Outro).

O Espelho é um espetáculo de cepa circense. Pois apesar da tecnologia sofisticada (audio spotlights, subwoofers, softwares, projeções stereo e mono de sons e imagens), Iain Mott faz surgir os personagens-Eu criados por Simone Reis por meio do jogo de vidros/espelhos chamado pepper-ghost, utilizado no teatro inglês do século XIX e nas apresentações da mulher-gorila dos circos e dos parques de diversão.

Também burlesco. No sentido de provocarem riso, suspense e tensão ao se apresentarem como projeções incômodas e às vezes grotescas do espectador que permanece sozinho, refletido na sequência de personagens-Eu intocáveis do outro lado do espelho.

(O burlesco e circense foram captados e reproduzidos com maestria na cenografia de Nelson Maravalhas).

Por falar em mulher-gorila...

Monga é uma imagem arquetípica. Representa o Eu-primitivo, animalesco de cada um de nós, espectadores. Monga habita não o ambiente das instituições culturais, teatros, museus, galerias de arte contemporânea - mas o grotesco, sórdido, decadente espaço dos circos de beira-de-estrada, dos trailers-feiras de aberrações, dos parques de diversão que percorrem os subúrbios e as cidades do interior.

Seriam os personagens-Eu de Simone Reis desdobramentos polidos, adestrados, educados, adequados, sobrepostos e humanizados da Monga que habita o espectador? O vidro-jaula que separa o espectador do monstro há de conter a fúria de Monga, caso falhe algum comando na casa das máquinas que funciona nos fundos da instalação?

Ao adentrar a instalação, o espectador não deve cometer o mesmo erro da estouvada Alice em Through the Looking Glass. A garota tentava não somente compreender a i-lógica, mas impor as suas próprias razões ao aparente disparate que prevalece do outro lado do espelho.

Da mesma forma que rainhas, sufis, santas, divindades afro-brasileiras, cangurus salteadores, suicidas - e tantos outros personagens-Eu podem não ser apenas aquilo que aparentam, a lógica de O Espelho pode estar disposta em camadas e mais camadas de i-lógica.

Só falta a madrasta Branca de Neve. Todos os dias a rainha vaidosa indagava ao Espelho (que jamais mentia): "existe alguém mais bonita do que eu?"

Na instalação, como não podia deixar de ser, ocorre o inverso: os personagens-Eu questionam a vaidade, os valores, os medos, os rompantes, a sanidade mental do espectador. E insistem nas perguntas: "você acha que eu sou louca?" "Você me acha bonita?"

(O espectador é múltiplo. Diante do espelho ele passa a ser múltiplo, o Outro. O espectador será qualquer coisa que deseje enquanto permaneça na instalação-caixa-quarto-aquário).

A instalação O Espelho é puro teatrinho. Brincadeira de criança, jogo que Simone Reis e Iain Mott convidam o espectador a participar. O espectador não é mais um dos cinquentões do conto de Machado, considerando sobre a configuração da alma. É criança a transformar a realidade palpável: usa a coroa de cartolina e papel laminado da rainha, da santa; fuma o charuto-de-alface do magnata; veste o cobertor velho virado em manto sagrado; percute as castanholas-chocalho de bebê; disfarça-se os óculos com nariz e bigode postiço; aplica no rosto a lanterninha made in taiwan e pétalas de rosa de plástico à guisa de produtos de beleza; atira com revólveres de espoleta e provoca suicídios, assassinatos, golpes de estado, revoluções.

A título de conclusão, o espectador pode recorrer ao sufismo e ao Tao: o espelho é o atributo da rainha. O homem se utiliza do homem como espelho.

PS: Enquanto Oxum ressona, Zé Celso (o bruxo-ator-diretor do Uzyna Uzona) elogia Simone Reis colocando-a no patamar das cômicas-zen Regina Casé e Dercy Gonçalves: O espectador-eu ampliaria a lista. Com os nomes das eternas juradas da tevê brasileira, referenciais estéticos e antifilosóficos com quem Simone Reis certamente aprendeu, diante de outra tela/espelho: Elke Maravilha; Aracy de Almeida; Wilza Karla; Márcia de Windsor; Maria Alcina. Cada uma segurando um lírio branco (ou uma rosa vermelha ou amarela, de plástico) distribuída pelo rabugento Pedro de Lara.

Gladstone Machado de Menezes nasceu em Brasília, em 1962. É escritor e artista visual. Publicou o livro Estado de Coma, de poesia e desenhos, em 1979. Em 2005, o romance Rapunzel. Em 2010, os contos Histórias Desagradáveis. Em 2012, o livro Kwe, Luzes do Arco-íris, uma pesquisa sobre candomblé. Cursou licenciatura em Artes Cênicas e especialização em Artes e Novas Tecnologias, na Universidade de Brasília. Realizou exposições coletivas e individuais e participou de salões de arte no Brasil, a partir 1993. Criou cenários para espetáculos de dança em Portugal.

Domingo, 13 Setembro 2015 17:49

Críticas nos Jornais

Segue o PDF abaixo.

Domingo, 13 Setembro 2015 17:46

O Espelho (conto original)

Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

 

Esboço de uma nova teoria da alma humana

 

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

 

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

 

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

 

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

 

- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

 

- Duas?

 

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

 

- Não?

 

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

 

- Perdão; essa senhora quem é?

 

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

 

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

 

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

 

- Espelho grande?

 

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

 

- Não.

 

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

 

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

 

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

 

- Matá-lo?

 

- Antes assim fosse.

 

- Coisa pior?

 

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

 

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

 

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

 

- Mas não comia?

 

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

 

- Na verdade, era de enlouquecer.

 

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

 

- Diga.

 

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

 

- Mas, diga, diga.

 

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

Domingo, 13 Setembro 2015 17:43

O Espelho: Uma instalação sonora e cênica

Artigo de Iain Mott.

Rebeca Guimarães – 14 anos
Instituto de Educação Fênix - INSEF, Ceilandia

Em relação ao cenário, como eu já li o livro de Machado de Assis, o quarto onde se passou o espetáculo é o mesmo de quando li o livro e imaginei o quarto de Jacobina. Uma outra observação foram os quadros: um casal, dois quadros relacionados a Jesus, uma mulher que aparenta ser a tia de Jacobina, e tem uma pintura quase na entrada para demonstrar Jacobina. Havia uma cama com uma boneca, e ao lado o espelho em uma penteadeira. O cenário é muito importante para a nossa imaginação, pois quando entramos podemos pensar em como achamos que deve ser. Em relação aos sons, foi incrível, porque é como se estivéssemos no lugar de Jacobina, que quando estava só, acabou ficando louco, ouvindo vozes de vários lugares. Achei muito interessante o fato de ter várias caixas de sons para ficar mais real essas ideias. As músicas deixaram o ambiente mais dramático e ajudou muito. O interessante é que as vezes a voz da atriz se encaixava com a música ou ao som do mundo, ou seja: pássaros, a boneca dormindo, gotas, entre diversas coisas . Em relação as luzes, ficou bastante legal as luzes coloridas, as vezes destacando os quadros, as vezes apagando e acendendo, ou mesmo tudo escuro, é mais uma maneira de imaginar. Em relação ao próprio espelho, é uma sensação muito estranha e diferente, ao sentarmos, muitas vezes parecia que a atriz era nosso reflexo, e que a sua voz era a nossa própria voz, percebi isso através da maneira que ouvimos. A ideia que se quis passar na minha opinião é que o nosso exterior é diferente do nosso interior, que existem duas almas, como está no papel: "... uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro"!... é isso!

Juliana Maria – 13 anos
Instituto de Educação Fênix - INSEF, Ceilandia

Bom, o espetáculo foi bem interessante e diferente. Foi além do que eu imaginava. O espaço, a decoração, som, as expressões faciais da atriz e luz, cada detalhe bem colocado, fez com que o espetáculo tivesse uma impressão do que aconteceu no vídeo, estava realmente acontecendo no quarto, pois as vozes e barulhos de fundo fez parecer que tinha alguma pessoa de trás de nós. Mesmo que tenha me dado medo, foi um ótimo espetáculo.

Domingo, 13 Setembro 2015 17:09

O Espelho, inspirada em Machado de Assis

Gladstone Machado de Menezes*, setembro de 2012

O espectador senta-se diante do espelho. Como Jacobina, o narrador do conto de Machado de Assis ele vê, nítido, o quarto refletido no vidro. Ouve: bolhas. Cigarras. Pios de pássaros. Música das estrelas.

Mais nada. A não ser o espaço vazio onde ele deveria se refletir.

As palavras especulação e consideração têm origem comum. Verdade ou mentira?

De acordo com o velho Dicionário dos Símbolos, especular era observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho (speculum). Sidus (estrela, astro) deu considerar, que significa olhar o conjunto das estrelas.

Então: diante do espelho o espectador especula. Para depois considerar. Será ele a silhueta difusa, aquele que não se vê no vidro? Ou será ele também a sequência de personagens-Eu que ocupam o lugar do reflexo, do outro lado do espelho?

Em O Espelho fica evidente a maturidade da atriz e performer Simone Reis. Como nos trabalhos anteriores, ela transita sem percalços entre o cult e o trash, o clássico e o popular, o sublime e o grotesco, o apolíneo e o dionisíaco, o Butoh e o teatro rebolado, o racional e a loucura, a superfície e a profundeza, a fotografia, a pintura e o vídeo, a Academia e o centro espírita.

Termos contrastantes sempre caracterizaram o trabalho de Simone Reis. Porém, ao compartilhar a direção com Iain Mott neste trabalho, combinam-se o arrebatamento e a fleuma, com resultado surpreendente. As contradições aparentes são suavizadas, recobertas por uma camada delicada de poesia, quase luz, quase aura.

Simone Reis atua desde o fim da década de 1980. Com Zé Celso e Zé do Caixão. De Melbourne, na Austrália, a Uberaba, em Minas Gerais, sem contar o Japão. Interpretou (em momentos diferentes) a doce Ofélia e o atormentado Hamlet. Encenou de Clarice Lispector a Edith Piaf, passando por Maria Bethânia e Raul Seixas. Participou da Companhia de Danças Atípicas, com os artistas Felícia Johansson, Eliana Carneiro e José Eduardo Garcia de Moraes. Et cetera.

O australiano Iain Mott, estuda música computadorizada, novas mídias de arte e desenho fonográfico. Além de criar instalações interativas de mídia computadorizada. Seus trabalhos foram apresentados nos quatro cantos do mundo: em Melbourne, na Austrália; na China; na Áustria; em Barcelona; em São Paulo; em Eindhoven, na Holanda; e agora, em Brasília.

O conto "O Espelho", de Machado de Assis, é o ponto de partida para a instalação concebida por Simone Reis e Iain Mott. Trata-se de uma estória dentro da estória. Cinco senhores cinquentões jogam conversa fora. Ou, melhor, especulam sobre a consistência da alma. Segundo Jacobina, cada ser humano possui não uma, mas duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.

Vale a pena recontar:

Aos 25 anos Jacobina fez-se alferes da Guarda Nacional. O respeito, o reconhecimento, a distinção e a bajulação com os quais a assunção do posto o distinguiu diante das pessoas fizeram com que ele passasse a se ver e reconhecer apenas como tal. O título de senhor alferes subiu-lhe tão completamente à cabeça que a alma exterior (a que olha de fora para dentro) ocupou o lugar da alma interior (a que olha de dentro para fora). A ponto de lhe borrar o ser-reflexo no vidro do espelho.

Diante do espelho o espectador vê o contorno. A ser preenchido pelos Eus dele e por uma infinidade de Outros, os personagens-Eu que surgem, sem que ele os possa controlar. Eles misturam-se. O espectador defronta-se com a impossibilidade de distinguir. E se embaça ao considerar sobre o espelho.

Pode-se chamar a instalação de espetáculo? Espetáculo também é da família de espelho.

(Espetáculo no sentido de Farsa, Teatro, Encenação. Ver e ver-se - e quem sabe, refletir-se por meio de símbolos, códigos, imagens, sons, palavras, disfarces articulados, no ator, performer, encenador - o Outro).

O Espelho é um espetáculo de cepa circense. Pois apesar da tecnologia sofisticada (audio spotlights, subwoofers, softwares, projeções stereo e mono de sons e imagens), Iain Mott faz surgir os personagens-Eu criados por Simone Reis por meio do jogo de vidros/espelhos chamado pepper-ghost, utilizado no teatro inglês do século XIX e nas apresentações da mulher-gorila dos circos e dos parques de diversão.

Também burlesco. No sentido de provocarem riso, suspense e tensão ao se apresentarem como projeções incômodas e às vezes grotescas do espectador que permanece sozinho, refletido na sequência de personagens-Eu intocáveis do outro lado do espelho.

(O burlesco e circense foram captados e reproduzidos com maestria na cenografia de Nelson Maravalhas).

Por falar em mulher-gorila...

Monga é uma imagem arquetípica. Representa o Eu-primitivo, animalesco de cada um de nós, espectadores. Monga habita não o ambiente das instituições culturais, teatros, museus, galerias de arte contemporânea - mas o grotesco, sórdido, decadente espaço dos circos de beira-de-estrada, dos trailers-feiras de aberrações, dos parques de diversão que percorrem os subúrbios e as cidades do interior.

Seriam os personagens-Eu de Simone Reis desdobramentos polidos, adestrados, educados, adequados, sobrepostos e humanizados da Monga que habita o espectador? O vidro-jaula que separa o espectador do monstro há de conter a fúria de Monga, caso falhe algum comando na casa das máquinas que funciona nos fundos da instalação?

Ao adentrar a instalação, o espectador não deve cometer o mesmo erro da estouvada Alice em Through the Looking Glass. A garota tentava não somente compreender a i-lógica, mas impor as suas próprias razões ao aparente disparate que prevalece do outro lado do espelho.

Da mesma forma que rainhas, sufis, santas, divindades afro-brasileiras, cangurus salteadores, suicidas - e tantos outros personagens-Eu podem não ser apenas aquilo que aparentam, a lógica de O Espelho pode estar disposta em camadas e mais camadas de i-lógica.

Só falta a madrasta Branca de Neve. Todos os dias a rainha vaidosa indagava ao Espelho (que jamais mentia): "existe alguém mais bonita do que eu?"

Na instalação, como não podia deixar de ser, ocorre o inverso: os personagens-Eu questionam a vaidade, os valores, os medos, os rompantes, a sanidade mental do espectador. E insistem nas perguntas: "você acha que eu sou louca?" "Você me acha bonita?"

(O espectador é múltiplo. Diante do espelho ele passa a ser múltiplo, o Outro. O espectador será qualquer coisa que deseje enquanto permaneça na instalação-caixa-quarto-aquário).

A instalação O Espelho é puro teatrinho. Brincadeira de criança, jogo que Simone Reis e Iain Mott convidam o espectador a participar. O espectador não é mais um dos cinquentões do conto de Machado, considerando sobre a configuração da alma. É criança a transformar a realidade palpável: usa a coroa de cartolina e papel laminado da rainha, da santa; fuma o charuto-de-alface do magnata; veste o cobertor velho virado em manto sagrado; percute as castanholas-chocalho de bebê; disfarça-se os óculos com nariz e bigode postiço; aplica no rosto a lanterninha made in taiwan e pétalas de rosa de plástico à guisa de produtos de beleza; atira com revólveres de espoleta e provoca suicídios, assassinatos, golpes de estado, revoluções.

A título de conclusão, o espectador pode recorrer ao sufismo e ao Tao: o espelho é o atributo da rainha. O homem se utiliza do homem como espelho.

PS: Enquanto Oxum ressona, Zé Celso (o bruxo-ator-diretor do Uzyna Uzona) elogia Simone Reis colocando-a no patamar das cômicas-zen Regina Casé e Dercy Gonçalves: O espectador-eu ampliaria a lista. Com os nomes das eternas juradas da tevê brasileira, referenciais estéticos e antifilosóficos com quem Simone Reis certamente aprendeu, diante de outra tela/espelho: Elke Maravilha; Aracy de Almeida; Wilza Karla; Márcia de Windsor; Maria Alcina. Cada uma segurando um lírio branco (ou uma rosa vermelha ou amarela, de plástico) distribuída pelo rabugento Pedro de Lara.

* Gladstone Machado de Menezes nasceu em Brasília, em 1962. É escritor e artista visual. Publicou o livro Estado de Coma, de poesia e desenhos, em 1979. Em 2005, o romance Rapunzel. Em 2010, os contos Histórias Desagradáveis. Em 2012, o livro Kwe, Luzes do Arco-íris, uma pesquisa sobre candomblé. Cursou licenciatura em Artes Cênicas e especialização em Artes e Novas Tecnologias, na Universidade de Brasília. Realizou exposições coletivas e individuais e participou de salões de arte no Brasil, a partir 1993. Criou cenários para espetáculos de dança em Portugal.

Domingo, 13 Setembro 2015 17:04

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