Domingo, 13 Setembro 2015 17:53

O Espelho, inspirada em Machado de Assis

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Gladstone Machado de Menezes, setembro de 2012

O espectador senta-se diante do espelho. Como Jacobina, o narrador do conto de Machado de Assis ele vê, nítido, o quarto refletido no vidro. Ouve: bolhas. Cigarras. Pios de pássaros. Música das estrelas.

Mais nada. A não ser o espaço vazio onde ele deveria se refletir.

As palavras especulação e consideração têm origem comum. Verdade ou mentira?

De acordo com o velho Dicionário dos Símbolos, especular era observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho (speculum). Sidus (estrela, astro) deu considerar, que significa olhar o conjunto das estrelas.

Então: diante do espelho o espectador especula. Para depois considerar. Será ele a silhueta difusa, aquele que não se vê no vidro? Ou será ele também a sequência de personagens-Eu que ocupam o lugar do reflexo, do outro lado do espelho?

Em O Espelho fica evidente a maturidade da atriz e performer Simone Reis. Como nos trabalhos anteriores, ela transita sem percalços entre o cult e o trash, o clássico e o popular, o sublime e o grotesco, o apolíneo e o dionisíaco, o Butoh e o teatro rebolado, o racional e a loucura, a superfície e a profundeza, a fotografia, a pintura e o vídeo, a Academia e o centro espírita.

Termos contrastantes sempre caracterizaram o trabalho de Simone Reis. Porém, ao compartilhar a direção com Iain Mott neste trabalho, combinam-se o arrebatamento e a fleuma, com resultado surpreendente. As contradições aparentes são suavizadas, recobertas por uma camada delicada de poesia, quase luz, quase aura.

Simone Reis atua desde o fim da década de 1980. Com Zé Celso e Zé do Caixão. De Melbourne, na Austrália, a Uberaba, em Minas Gerais, sem contar o Japão. Interpretou (em momentos diferentes) a doce Ofélia e o atormentado Hamlet. Encenou de Clarice Lispector a Edith Piaf, passando por Maria Bethânia e Raul Seixas. Participou da Companhia de Danças Atípicas, com os artistas Felícia Johansson, Eliana Carneiro e José Eduardo Garcia de Moraes. Et cetera.

O australiano Iain Mott, estuda música computadorizada, novas mídias de arte e desenho fonográfico. Além de criar instalações interativas de mídia computadorizada. Seus trabalhos foram apresentados nos quatro cantos do mundo: em Melbourne, na Austrália; na China; na Áustria; em Barcelona; em São Paulo; em Eindhoven, na Holanda; e agora, em Brasília.

O conto "O Espelho", de Machado de Assis, é o ponto de partida para a instalação concebida por Simone Reis e Iain Mott. Trata-se de uma estória dentro da estória. Cinco senhores cinquentões jogam conversa fora. Ou, melhor, especulam sobre a consistência da alma. Segundo Jacobina, cada ser humano possui não uma, mas duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.

Vale a pena recontar:

Aos 25 anos Jacobina fez-se alferes da Guarda Nacional. O respeito, o reconhecimento, a distinção e a bajulação com os quais a assunção do posto o distinguiu diante das pessoas fizeram com que ele passasse a se ver e reconhecer apenas como tal. O título de senhor alferes subiu-lhe tão completamente à cabeça que a alma exterior (a que olha de fora para dentro) ocupou o lugar da alma interior (a que olha de dentro para fora). A ponto de lhe borrar o ser-reflexo no vidro do espelho.

Diante do espelho o espectador vê o contorno. A ser preenchido pelos Eus dele e por uma infinidade de Outros, os personagens-Eu que surgem, sem que ele os possa controlar. Eles misturam-se. O espectador defronta-se com a impossibilidade de distinguir. E se embaça ao considerar sobre o espelho.

Pode-se chamar a instalação de espetáculo? Espetáculo também é da família de espelho.

(Espetáculo no sentido de Farsa, Teatro, Encenação. Ver e ver-se - e quem sabe, refletir-se por meio de símbolos, códigos, imagens, sons, palavras, disfarces articulados, no ator, performer, encenador - o Outro).

O Espelho é um espetáculo de cepa circense. Pois apesar da tecnologia sofisticada (audio spotlights, subwoofers, softwares, projeções stereo e mono de sons e imagens), Iain Mott faz surgir os personagens-Eu criados por Simone Reis por meio do jogo de vidros/espelhos chamado pepper-ghost, utilizado no teatro inglês do século XIX e nas apresentações da mulher-gorila dos circos e dos parques de diversão.

Também burlesco. No sentido de provocarem riso, suspense e tensão ao se apresentarem como projeções incômodas e às vezes grotescas do espectador que permanece sozinho, refletido na sequência de personagens-Eu intocáveis do outro lado do espelho.

(O burlesco e circense foram captados e reproduzidos com maestria na cenografia de Nelson Maravalhas).

Por falar em mulher-gorila...

Monga é uma imagem arquetípica. Representa o Eu-primitivo, animalesco de cada um de nós, espectadores. Monga habita não o ambiente das instituições culturais, teatros, museus, galerias de arte contemporânea - mas o grotesco, sórdido, decadente espaço dos circos de beira-de-estrada, dos trailers-feiras de aberrações, dos parques de diversão que percorrem os subúrbios e as cidades do interior.

Seriam os personagens-Eu de Simone Reis desdobramentos polidos, adestrados, educados, adequados, sobrepostos e humanizados da Monga que habita o espectador? O vidro-jaula que separa o espectador do monstro há de conter a fúria de Monga, caso falhe algum comando na casa das máquinas que funciona nos fundos da instalação?

Ao adentrar a instalação, o espectador não deve cometer o mesmo erro da estouvada Alice em Through the Looking Glass. A garota tentava não somente compreender a i-lógica, mas impor as suas próprias razões ao aparente disparate que prevalece do outro lado do espelho.

Da mesma forma que rainhas, sufis, santas, divindades afro-brasileiras, cangurus salteadores, suicidas - e tantos outros personagens-Eu podem não ser apenas aquilo que aparentam, a lógica de O Espelho pode estar disposta em camadas e mais camadas de i-lógica.

Só falta a madrasta Branca de Neve. Todos os dias a rainha vaidosa indagava ao Espelho (que jamais mentia): "existe alguém mais bonita do que eu?"

Na instalação, como não podia deixar de ser, ocorre o inverso: os personagens-Eu questionam a vaidade, os valores, os medos, os rompantes, a sanidade mental do espectador. E insistem nas perguntas: "você acha que eu sou louca?" "Você me acha bonita?"

(O espectador é múltiplo. Diante do espelho ele passa a ser múltiplo, o Outro. O espectador será qualquer coisa que deseje enquanto permaneça na instalação-caixa-quarto-aquário).

A instalação O Espelho é puro teatrinho. Brincadeira de criança, jogo que Simone Reis e Iain Mott convidam o espectador a participar. O espectador não é mais um dos cinquentões do conto de Machado, considerando sobre a configuração da alma. É criança a transformar a realidade palpável: usa a coroa de cartolina e papel laminado da rainha, da santa; fuma o charuto-de-alface do magnata; veste o cobertor velho virado em manto sagrado; percute as castanholas-chocalho de bebê; disfarça-se os óculos com nariz e bigode postiço; aplica no rosto a lanterninha made in taiwan e pétalas de rosa de plástico à guisa de produtos de beleza; atira com revólveres de espoleta e provoca suicídios, assassinatos, golpes de estado, revoluções.

A título de conclusão, o espectador pode recorrer ao sufismo e ao Tao: o espelho é o atributo da rainha. O homem se utiliza do homem como espelho.

PS: Enquanto Oxum ressona, Zé Celso (o bruxo-ator-diretor do Uzyna Uzona) elogia Simone Reis colocando-a no patamar das cômicas-zen Regina Casé e Dercy Gonçalves: O espectador-eu ampliaria a lista. Com os nomes das eternas juradas da tevê brasileira, referenciais estéticos e antifilosóficos com quem Simone Reis certamente aprendeu, diante de outra tela/espelho: Elke Maravilha; Aracy de Almeida; Wilza Karla; Márcia de Windsor; Maria Alcina. Cada uma segurando um lírio branco (ou uma rosa vermelha ou amarela, de plástico) distribuída pelo rabugento Pedro de Lara.

Gladstone Machado de Menezes nasceu em Brasília, em 1962. É escritor e artista visual. Publicou o livro Estado de Coma, de poesia e desenhos, em 1979. Em 2005, o romance Rapunzel. Em 2010, os contos Histórias Desagradáveis. Em 2012, o livro Kwe, Luzes do Arco-íris, uma pesquisa sobre candomblé. Cursou licenciatura em Artes Cênicas e especialização em Artes e Novas Tecnologias, na Universidade de Brasília. Realizou exposições coletivas e individuais e participou de salões de arte no Brasil, a partir 1993. Criou cenários para espetáculos de dança em Portugal.

Lido 2150 vezes Última modificação em Sexta, 23 Outubro 2015 19:01

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