Domingo, 13 Setembro 2015 17:09

O Espelho, inspirada em Machado de Assis

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Gladstone Machado de Menezes*, setembro de 2012

O espectador senta-se diante do espelho. Como Jacobina, o narrador do conto de Machado de Assis ele vê, nítido, o quarto refletido no vidro. Ouve: bolhas. Cigarras. Pios de pássaros. Música das estrelas.

Mais nada. A não ser o espaço vazio onde ele deveria se refletir.

As palavras especulação e consideração têm origem comum. Verdade ou mentira?

De acordo com o velho Dicionário dos Símbolos, especular era observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho (speculum). Sidus (estrela, astro) deu considerar, que significa olhar o conjunto das estrelas.

Então: diante do espelho o espectador especula. Para depois considerar. Será ele a silhueta difusa, aquele que não se vê no vidro? Ou será ele também a sequência de personagens-Eu que ocupam o lugar do reflexo, do outro lado do espelho?

Em O Espelho fica evidente a maturidade da atriz e performer Simone Reis. Como nos trabalhos anteriores, ela transita sem percalços entre o cult e o trash, o clássico e o popular, o sublime e o grotesco, o apolíneo e o dionisíaco, o Butoh e o teatro rebolado, o racional e a loucura, a superfície e a profundeza, a fotografia, a pintura e o vídeo, a Academia e o centro espírita.

Termos contrastantes sempre caracterizaram o trabalho de Simone Reis. Porém, ao compartilhar a direção com Iain Mott neste trabalho, combinam-se o arrebatamento e a fleuma, com resultado surpreendente. As contradições aparentes são suavizadas, recobertas por uma camada delicada de poesia, quase luz, quase aura.

Simone Reis atua desde o fim da década de 1980. Com Zé Celso e Zé do Caixão. De Melbourne, na Austrália, a Uberaba, em Minas Gerais, sem contar o Japão. Interpretou (em momentos diferentes) a doce Ofélia e o atormentado Hamlet. Encenou de Clarice Lispector a Edith Piaf, passando por Maria Bethânia e Raul Seixas. Participou da Companhia de Danças Atípicas, com os artistas Felícia Johansson, Eliana Carneiro e José Eduardo Garcia de Moraes. Et cetera.

O australiano Iain Mott, estuda música computadorizada, novas mídias de arte e desenho fonográfico. Além de criar instalações interativas de mídia computadorizada. Seus trabalhos foram apresentados nos quatro cantos do mundo: em Melbourne, na Austrália; na China; na Áustria; em Barcelona; em São Paulo; em Eindhoven, na Holanda; e agora, em Brasília.

O conto "O Espelho", de Machado de Assis, é o ponto de partida para a instalação concebida por Simone Reis e Iain Mott. Trata-se de uma estória dentro da estória. Cinco senhores cinquentões jogam conversa fora. Ou, melhor, especulam sobre a consistência da alma. Segundo Jacobina, cada ser humano possui não uma, mas duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.

Vale a pena recontar:

Aos 25 anos Jacobina fez-se alferes da Guarda Nacional. O respeito, o reconhecimento, a distinção e a bajulação com os quais a assunção do posto o distinguiu diante das pessoas fizeram com que ele passasse a se ver e reconhecer apenas como tal. O título de senhor alferes subiu-lhe tão completamente à cabeça que a alma exterior (a que olha de fora para dentro) ocupou o lugar da alma interior (a que olha de dentro para fora). A ponto de lhe borrar o ser-reflexo no vidro do espelho.

Diante do espelho o espectador vê o contorno. A ser preenchido pelos Eus dele e por uma infinidade de Outros, os personagens-Eu que surgem, sem que ele os possa controlar. Eles misturam-se. O espectador defronta-se com a impossibilidade de distinguir. E se embaça ao considerar sobre o espelho.

Pode-se chamar a instalação de espetáculo? Espetáculo também é da família de espelho.

(Espetáculo no sentido de Farsa, Teatro, Encenação. Ver e ver-se - e quem sabe, refletir-se por meio de símbolos, códigos, imagens, sons, palavras, disfarces articulados, no ator, performer, encenador - o Outro).

O Espelho é um espetáculo de cepa circense. Pois apesar da tecnologia sofisticada (audio spotlights, subwoofers, softwares, projeções stereo e mono de sons e imagens), Iain Mott faz surgir os personagens-Eu criados por Simone Reis por meio do jogo de vidros/espelhos chamado pepper-ghost, utilizado no teatro inglês do século XIX e nas apresentações da mulher-gorila dos circos e dos parques de diversão.

Também burlesco. No sentido de provocarem riso, suspense e tensão ao se apresentarem como projeções incômodas e às vezes grotescas do espectador que permanece sozinho, refletido na sequência de personagens-Eu intocáveis do outro lado do espelho.

(O burlesco e circense foram captados e reproduzidos com maestria na cenografia de Nelson Maravalhas).

Por falar em mulher-gorila...

Monga é uma imagem arquetípica. Representa o Eu-primitivo, animalesco de cada um de nós, espectadores. Monga habita não o ambiente das instituições culturais, teatros, museus, galerias de arte contemporânea - mas o grotesco, sórdido, decadente espaço dos circos de beira-de-estrada, dos trailers-feiras de aberrações, dos parques de diversão que percorrem os subúrbios e as cidades do interior.

Seriam os personagens-Eu de Simone Reis desdobramentos polidos, adestrados, educados, adequados, sobrepostos e humanizados da Monga que habita o espectador? O vidro-jaula que separa o espectador do monstro há de conter a fúria de Monga, caso falhe algum comando na casa das máquinas que funciona nos fundos da instalação?

Ao adentrar a instalação, o espectador não deve cometer o mesmo erro da estouvada Alice em Through the Looking Glass. A garota tentava não somente compreender a i-lógica, mas impor as suas próprias razões ao aparente disparate que prevalece do outro lado do espelho.

Da mesma forma que rainhas, sufis, santas, divindades afro-brasileiras, cangurus salteadores, suicidas - e tantos outros personagens-Eu podem não ser apenas aquilo que aparentam, a lógica de O Espelho pode estar disposta em camadas e mais camadas de i-lógica.

Só falta a madrasta Branca de Neve. Todos os dias a rainha vaidosa indagava ao Espelho (que jamais mentia): "existe alguém mais bonita do que eu?"

Na instalação, como não podia deixar de ser, ocorre o inverso: os personagens-Eu questionam a vaidade, os valores, os medos, os rompantes, a sanidade mental do espectador. E insistem nas perguntas: "você acha que eu sou louca?" "Você me acha bonita?"

(O espectador é múltiplo. Diante do espelho ele passa a ser múltiplo, o Outro. O espectador será qualquer coisa que deseje enquanto permaneça na instalação-caixa-quarto-aquário).

A instalação O Espelho é puro teatrinho. Brincadeira de criança, jogo que Simone Reis e Iain Mott convidam o espectador a participar. O espectador não é mais um dos cinquentões do conto de Machado, considerando sobre a configuração da alma. É criança a transformar a realidade palpável: usa a coroa de cartolina e papel laminado da rainha, da santa; fuma o charuto-de-alface do magnata; veste o cobertor velho virado em manto sagrado; percute as castanholas-chocalho de bebê; disfarça-se os óculos com nariz e bigode postiço; aplica no rosto a lanterninha made in taiwan e pétalas de rosa de plástico à guisa de produtos de beleza; atira com revólveres de espoleta e provoca suicídios, assassinatos, golpes de estado, revoluções.

A título de conclusão, o espectador pode recorrer ao sufismo e ao Tao: o espelho é o atributo da rainha. O homem se utiliza do homem como espelho.

PS: Enquanto Oxum ressona, Zé Celso (o bruxo-ator-diretor do Uzyna Uzona) elogia Simone Reis colocando-a no patamar das cômicas-zen Regina Casé e Dercy Gonçalves: O espectador-eu ampliaria a lista. Com os nomes das eternas juradas da tevê brasileira, referenciais estéticos e antifilosóficos com quem Simone Reis certamente aprendeu, diante de outra tela/espelho: Elke Maravilha; Aracy de Almeida; Wilza Karla; Márcia de Windsor; Maria Alcina. Cada uma segurando um lírio branco (ou uma rosa vermelha ou amarela, de plástico) distribuída pelo rabugento Pedro de Lara.

* Gladstone Machado de Menezes nasceu em Brasília, em 1962. É escritor e artista visual. Publicou o livro Estado de Coma, de poesia e desenhos, em 1979. Em 2005, o romance Rapunzel. Em 2010, os contos Histórias Desagradáveis. Em 2012, o livro Kwe, Luzes do Arco-íris, uma pesquisa sobre candomblé. Cursou licenciatura em Artes Cênicas e especialização em Artes e Novas Tecnologias, na Universidade de Brasília. Realizou exposições coletivas e individuais e participou de salões de arte no Brasil, a partir 1993. Criou cenários para espetáculos de dança em Portugal.

Lido 15333 vezes Última modificação em Sexta, 23 Outubro 2015 19:00

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